29 de outubro de 2008

Será que é assim?

Suponhamos uma família pobre e uma criança nela habitando. Não há comida. Para a criança, há sensação desagradável que logo cedo chama de fome e vontade de comer. Não há avaliação. Há reclamos, choramingos, que a depender da mãe, da família, recebe porrada ou compreensão, pequenas e poucas palavras de afago para que possa suportar a dor. Engana-se o estômago. papel ou barro. Não há explicação. A criança sente. Sente e reclama. É do vivo sentir. Não há explicação. Não há transcendência. A criança vive na imanência das sensações e dos seus efeitos corporais. Alguém então diz: você nasceu para o sofrimento. É uma explicação. O mundo das idéias começa a ser habitado. Nasceu para o sofrimento. Mas no plano do corpo não há sofrimento, há sensações. A própria sensação da fome. Um vazio, um silêncio. Algo dentro que se filia a um fora que rápido pode ser esquecido levado pelo brinquedo. Mas os adultos podem derramar desde cedo nos ouvidos das crianças transcendências, explicações. Normalmente é assim. E normalmente derramam uma explicação negativa da vida, derramam uma linguagem negativa da existência: um mar de dor e sofrimento. Mas trata-se apenas de uma explicação, de uma transcendência, de uma composição de idéias. E tudo isso a golpes de quê? Às vezes de força, às vezes de ritornelos laureados de carinho e lamentos. Produz-se e socializa-se um modo negativo de sentir a vida e de vivê-la.

2 comentários:

Salomão Santana disse...

Gostei bom, muito bom.

Kleber disse...

eis que meus olhos pousaram em um texto sem órgãos. tudo que está no corpo da postagem, parece encaminhar para uma sentença. entretanto, aquilo que chama para o texto, seu título, se dá como uma problematização. "será que é assim?". não penso que haja aí uma abertura para uma incerteza. leio como uma força que clama para que se atente às experimentações, para o fazer cotidiano, para as nossas ditas práticas. assim é um texto amigo; não porque nele se estabelece uma política de identidades, mas porque com ele é possível produzir diferença. uma bela imagem, a qual Maurício nos convida (provoca) a atravessar. abraço!